Você está passeando no shopping e vê uma pessoa com a camisa da Seleção brasileira. Qual é a primeira coisa que passa na sua cabeça?
Aposto que duas Copas do Mundo atrás a famosa camisa amarela com o símbolo da CBF te fazia pensar no hexa, no Neymar, (na pior das hipóteses) no 7x1, ou em qualquer outra coisa relacionada à Seleção. Mas o fato é que hoje, mesmo em ritmo de Copa, ainda é difícil não associar o símbolo a um posicionamento político.
No meio de tanto problema nesse país tropical em que vivemos pode parecer uma perda de tempo discutir a narrativa por trás de uma camisa, mas você já deve saber que essa conversa toda vai muito além de uma peça de roupa.
Em menos de 10 anos a narrativa sobre a amada camisa da Seleção mudou radicalmente. Ela foi de símbolo de união a símbolo de polarização. Deixou de ser um uniforme de futebol e virou um uniforme partidário.
Antes de tudo, vale lembrar que oficialmente ela não é um símbolo nacional. Nossos símbolos oficiais mesmo são a bandeira, o hino, o brasão e o selo nacional. Mas, se a função dos símbolos nacionais é representar a identidade de uma nação e exaltar o sentimento de pertencimento entre o mesmo povo, fica fácil concordar que a camisa amarela da Seleção cumpria bem esse papel.
Essa era a camisa capaz de unir corintianos e palmeirenses, flamenguistas e tricolores cariocas, ou qualquer um dos clássicos que você conseguir lembrar.
No Brasil, uma vez a cada quatro anos, rivais se unem para torcer do mesmo lado e, na minha memória, eles estavam sempre vestidos de amarelo.
Eu até me surpreendi quando descobri que não foi sempre assim. Até 1950 o Brasil jogava de branco e só três anos depois da derrota pro Uruguai na final da Copa de 50 (que aconteceu em casa, no Maracanã, e deixou o país tristíssimo) foi levantada a ideia de que a camiseta branca não representava verdadeiramente o espírito brasileiro e, por meio de uma votação no jornal, chegamos à versão amarela, carinhosamente apelidada “Amarelinha”, amplamente aceita pela torcida e utilizada pela primeira vez em 1954, na Suíça.
Seja pra evitar o suposto azar da camisa branca ou para apagar a derrota de memória, desde sua adoção a camisa amarela protagonizou tantas conquistas que uma nova mudança nunca foi questionada. Nem mesmo o terrível 7x1 serviu de pretexto para os brasileiros deixarem de gostar dela.
Mas o uso político dessa peça fez o que nenhum placar conseguiu.
Vamos ser honestos aqui, essa não é a primeira vez que símbolos nacionais se misturam com política. Uma galera já tinha pintado a cara de verde e amarelo e balançado a bandeira do Brasil pelo impeachment do Collor em 92 e os militares usaram e abusaram da bandeira, do hino e até da vitória da seleção brasileira em 70.
Mas nunca antes uma figura pública havia sequestrado esses símbolos. Nos movimentos anteriores, mesmo com envolvimento político, eles ainda tinham como objetivo representar e exaltar a nação, mas hoje estão inevitavelmente atrelados à um único nome. Nome que eu nem citei no texto mas você já sabe quem é, tamanha é a força dessa apropriação.
A vestimenta é um dos principais jeitos de identificar um grupo e fazer com que indivíduos se percebam parte de um coletivo, daí o papel dos uniformes. Cria-se um problema enorme quando um uniforme que representava um país inteiro é adotado apenas por metade dele, forçando a outra parte a abrir mão de tudo o que ele representou até então.
Essa pesquisa de agosto deste ano mostrou que 58% dos brasileiros sentiam saudade de usar algo com as cores do Brasil.
Para driblar a politização, torcedores apostaram na camisa azul da Seleção, que esgotou em uma hora no site da Nike, enquanto a amarela continuou lá.
E tudo continuaria assim, principalmente depois das eleições presidenciais que acirraram ainda mais a polarização, se não fosse um pequeno grande porém: a Copa do Mundo.
No capitalismo, paixão vira produto que vira dinheiro.
Na Copa, futebol vira produto que vira dinheiro.
Se metade do Brasil deixa de amar a principal camisa da Seleção brasileira e tudo o que se assemelhe a ela, isso impacta diretamente marcas que lucram com esse símbolo. Daí, as marcas tem duas opções:
adotar a nova narrativa e se adaptar à ela, ou
tentar resgatar a narrativa anterior
A CBF, a Nike e várias outras marcas escolheram a segunda opção.
Mas afinal, será que depois de tudo o que rolou ainda vale o esforço?
Vamos combinar que opções de cor não faltam, né?
Daria muito bem pra voltar para a versão branca, adotar de vez a azul ou ainda criar uma verde inédita. Antes da Copa começar eu confesso que essa era a minha solução para o problema.
Me vestindo para o primeiro jogo eu me senti exatamente assim:
Mas depois que o Brasil entra em campo, surge uma vontade estranha de pintar a cara de verde e amarelo, soprar vuvuzela, xingar outros países sem nenhum motivo aparente e… vestir a camisa da Seleção. Porque a Copa faz isso, ativa na gente só as memórias boas de criança assistindo o jogo na casa da vó.
Para a alegria dos nostálgicos como eu, ainda existe esperança de resgatar esse símbolo tão amado. Segundo a cientista política Deysi Cioccari, é possível afastar a conotação política da camisa:
“O esporte tem esta capacidade de unir um país dividido, a gente vê em Olimpíada e Copa do Mundo, mudam os valores (…) Em momentos de ditadura, como Estado Novo, ou Ditadura Militar, as cores verde e amarela foram trazidas pelos governos, puxando pelo nacionalismo exacerbado. Hoje ninguém fala que verde e amarelo teve relação com a ditadura - e teve, muito forte. Estas coisas vão se apagando, porque pegam outra simbologia, outro olhar sobre o verde e amarelo”
E, ao mesmo tempo em que alguns jogadores da seleção contribuíram para a partidarização da camisa ao apoiar o movimento político com ela, alguns só querem que ela volte a ser um símbolo de união. Em entrevista, o atacante Rodrygo disse:
Agora que acabou a eleição fica mais fácil (resgatar a camisa). A gente sabe que a Seleção tem esse objetivo de unir o povo, podemos trazer isso com a Copa do Mundo, fazer com que esqueçam um pouco a política. Vai ser uma alegria grande ver o povo unido de novo.
Além de campanhas publicitárias, estudiosos e atletas falando pelo fim da partidarização da camisa, outros fatores favorecem essa retomada de significado, como a Anita usando os símbolos nos seus shows e levando a tendência Brazil Core (que nasceu e segue viva nas periferias) para o mundo, e o Djonga usando a camisa da seleção em seus shows e afirmando que ela é de todos.
Se essa reflexão toda ainda não te convenceu de que a camisa da Seleção pode voltar a ter o mesmo significado de duas Copas atrás, quero te lembrar que a narrativa nada mais é do que uma história contada repetidas vezes que molda a maneira como a sociedade enxerga, entende e reage aos assuntos do mundo. O único jeito de mudá-la é se apropriando dela, voltando a contar a história do símbolo como ela deveria ser contada.
Despolitizar a camisa da Seleção é um esforço coletivo, que depende muito das marcas, dos grandes nomes, dos ídolos, mas também da gente que é brasileiro que só torcer em paz.
Está na hora de, finalmente, fazer as pazes com a Amarelinha.
🔎 Teoria para se aprofundar
E se o Brasil fosse uma marca? Esse estudo usa metodologias de Branding para entender o valor que o Brasil gera como marca. É uma pesquisa inédita da renomada agência Ana Couto que traz reflexões poderosas sobre como sair da promessa de “país do futuro” e finalmente se tornar a potência mundial à muito prometida e aguardada. Além de falar sobre as nossas relações com os símbolos nacionais hoje (tudo a ver com essa edição).
Esse podcast conta toda a história de como a camiseta amarela da seleção foi sequestrada do povo para servir outros propósitos, além de contar várias fofocas da FIFA e da CBF.
Esse podcast que parece uma conversa de bar traz uma visão positiva sobre o resgate do símbolo, apontando vários elementos que criam condições favoráveis para que a narrativa da camisa volte a ser o que era.
✨ Case para se inspirar
A Ambev também entrou na briga para resgatar a Amarelinha.
Essa campanha da Brahma, desenvolvida pela Agência África, foi a que mais se aproximou da tensão política em torno dos símbolos nacionais. Indo direto ao ponto, o vídeo pede ao público para relembrar o significado original da amarelinha e não ter medo de vesti-la. Tudo isso na voz do Galvão Bueno.
“Uma camisa que simboliza a nossa brasilidade, a nossa paixão, o nosso orgulho… Então vamos tirar a amarelinha do armário e vestir essa camisa.”
📌 Links aleatórios que valem o clique
🍺 Você provavelmente viu aquela foto do Messi jogando xadrez com o Cristiano Ronaldo em uma campanha da Louis Vuitton. O que você talvez não tenha visto é essa releitura abrasileirada da Ambev que ficou boa demais.
😂 Durante a Copa, a regra é clara.
⚽ Essa arte linda da newsletter New Plan Journal resume todo o poder da Copa. Eu que amo ver poesia nas coisas achei lindo. A edição completa está aqui.
Essa edição chegou no seu e-mail excepcionalmente numa quarta-feira, porque a vida por aqui está uma loucura e não consegui entregar, como de costume, na terça. Mas semana que vem voltamos à programação normal :)
Eu demorei pra entender onde eu queria chegar com esse texto. Eu poderia abordar esse tema de mil pontos de vista diferentes, utilizar milhares de exemplos, assumir outro tom de voz. Mas acho que consegui dizer tudo o que se passou aqui na minha cabeça desde o começo desse campeonato que mexe tanto com a gente.
E você, voltou a vestir a camisa amarela ou comprou a azul? Tem uma opinião diferente sobre a volta do significado desse símbolo? Me conta aí.
Até terça que vem!
Le da Teoricamente