Evitamos falar sobre a morte porque não queremos lembrar que ela existe e, ao mesmo tempo, dedicamos tempo em encontrar maneiras de continuarmos vivos. Como a tecnologia tem reescrito a narrativa sobre a morte?
Eu lembro da primeira vez que me dei conta da morte.
Foi um ou dois anos depois de duas pessoas muito próximas terem morrido: minha tia e, um mês depois, meu avô.
Apesar de ter participado dos velórios, minhas memórias são diferentes das dos adultos. Eu lembro do choro, lembro da tristeza… mas tudo isso se mistura com a visão dos meus primos brincando nos corredores do cemitério.
As crianças têm esse dom de enxergar a vida com lentes diferentes. E foram as lentes da inocência que fizeram com que a minha descoberta sobre a morte demorasse um pouco mais pra chegar.
Isso aconteceu quase um ano depois, quando eu tinha entre 7 e 8 anos e estava deitada no meu quarto prestes a pegar no sono quando um pensamento brusco, que nem sei de onde veio, apareceu na minha cabeça como um relâmpago, iluminando tudo e deixando escuro de novo:
“Um dia eu vou morrer”
E logo em seguida:
“Um dia meus pais vão morrer também”
Foi um susto.
Ninguém me contou e, de repente, eu sabia.
Fiquei incomodada com o fato de só ter percebido naquele momento, como se o mundo inteiro tivesse me traído, me fazendo acreditar que tudo o que eu conhecia e amava era temporário.
Nunca fui a mesma depois dessa noite.
A consciência da brevidade da vida foi um golpe e, a cada dia que passa, me questiono mais e mais sobre ela.
Passamos a vida toda negando que somos finitos.
Colocamos botox para enganar o reflexo no espelho sem sinais de idade, nos recusamos a reconhecer os cabelos brancos quando chegam, brigamos com o tempo e driblamos os anos, conhecemos bem nosso fim e tentamos adiá-lo, mesmo sabendo que é impossível.
Enganamos nossa cabeça enquanto sentimos os sinais da idade no corpo.
Ao mesmo tempo, nos preparamos para o depois.
Inconscientemente, damos um jeito de uma parte de nós ficar por aqui.
Fazemos filhos para que eles continuem de alguma forma o que um dia nós fomos, ou tentamos deixar para trás uma obra, um legado que dure mais do que nossa expectativa de vida.
Foi o que os artistas que o mundo continua admirando mesmo depois de centenas de anos fizeram.
Jane Austen morreu em 1817. Passados 206 anos, tenho três de seus livros na minha estante.
Ela conseguiu. Está viva, apesar de morta.
Mas, não sei se você já percebeu, estamos entrando em um novo momento.
Herdeiros ou obras não são mais o único meio de se manter, de alguma maneira, vivo após a morte.
Em janeiro, a empresa responsável pela gestão da marca do Pelé, anunciou um avatar hiper-realista do ex-jogador com o objetivo de eternizar sua presença nas redes sociais.
Eternizar.
O rosto de uma pessoa morta reconstruído em 3D, interagindo com outras pessoas virtualmente, como se ela ainda estivesse… viva.
E não se trata apenas das celebridades. Cinco anos atrás, um filho gravou o pai contando histórias sobre a sua vida durante o tratamento de um câncer de pulmão em estágio terminal. Os áudios alimentaram uma inteligência artificial que utiliza a mesma tecnologia da Alexa, assistente virtual desenvolvida pela Amazon, identificando quando fazer piadas, dar conselhos, contar histórias ou até mesmo cantar uma música. Assim, pai e filho continuam conversando mesmo depois da sua partida.
A reflexão sobre morte digital está mais perto de nós do que nos damos conta.
As redes sociais já estão de olho nisso. O Facebook, o Instagram e o LinkedIn dão duas opções quando um usuário morre: deletar a conta completamente ou transforma-lá em um memorial, onde parentes e amigos ainda podem prestar homenagens. No iPhone tem até como criar um testamento digital, dizendo quem você autoriza que acesse seus dados do iCloud e senhas depois da sua morte.
A ideia de herança digital já é uma realidade, é só jogar essas duas palavras no Google pra ter uma ideia de quanto material já existe sobre o tema.
Para onde estamos indo?
Seja com a criação de avatares 3D, inteligência artificial ou com terceiros gerenciando o engajamento das redes de falecidos, a morte como conhecemos pouco a pouco vai deixando de existir.
Nossos bisnetos (ou talvez até nossos netos) terão outra relação com esse tema no futuro porque o jeito como o narramos começou a mudar agora.
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"Queríamos capturar sua memória e mantê-lo conosco da maneira que fosse possível” disse James Vlahos, criador do Dadbot. Esse mini documentário de 7 minutos conta como James criou uma inteligência artificial com as histórias que seu pai contava durante um tratamento de câncer.
A tecnologia pode reescrever seus erros? Esse zine digital toca em assuntos polêmicos no que diz respeito à nossa relação com a tecnologia, tais como: privacidade, saúde e morte. (em inglês)
Juro que não dá pra falar sobre esse assunto sem citar Black Mirror.
Caso você não tenha feito parte da loucura que foi quando essa série foi lançada em 2011, meu Deus já faz 12 anos, assistir as três primeiras temporadas é quase obrigatório.
Ela faz uma reflexão profunda sobre a tecnologia nas nossas vidas e, em alguns episódios de forma exagerada e em outros de forma bem sutil, questiona os limites que estamos traçando (ou não) entre o real e o digital. Mas o mais maluco mesmo é perceber como tantas coisas que pareciam muito distantes, em uma década já viraram realidade.
Dois episódios em especial são muito conectados com a edição de hoje. Se você estiver querendo fritar sua cabeça com o tema (de um jeito bom), sugiro que assista:
Temporada 2, episódio "Volto já”
Temporada 3, episódio "San Junipero”
🤯 “O próximo passo na busca humana pela imortalidade”, foi assim que o jornal The Washington Post definiu o aplicativo HereAfter AI. A promessa do app é preservar suas memórias a partir de uma entrevista sobre a sua vida, que no futuro servirão como uma espécie de base de dados para que familiares e amigos consigam conversar virtualmente com "você".
💻 Esse quiz te diz como você está moldando o futuro da tecnologia por meio das decisões que você toma em relação aos seus avanços. Parece complexo, mas são perguntas simples e o quiz é bem rápido. O meu resultado foi esse aqui (e eu não poderia concordar mais):
✏️ ok, agora a tecnologia foi longe demais.
Ufa! Chegamos ao fim da edição 10.
Sendo bem sincera, a morte é um tema que me traz muita ansiedade e foi um desafio enorme falar sobre ela. Mas, enquanto escrevo essa mensagem final sinto que parar de tratar o tema como um tabu me fez melhor do que eu poderia imaginar.
Espero que a reflexão tenha feito sentido pra você também. Se quiser prolongar a conversa é só responder esse e-mail, vou adorar te responder.Antes de ir embora, não esquece de curtir essa edição e compartilhar com 1 amigo(a) que possa se interessar.
Te espero quarta que vem (com um tema mais leve, prometo!)
Le
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👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn, Instagram e Twitter (com mais frequência do que deveria).