Já tem um tempo que venho me questionando sobre a beleza, sobre a a péssima relação que eu e ela desenvolvemos ao longo dos anos e sobre como esse é um problema coletivo. No dia em que me dão parabéns por ser uma mulher, é sobre essa grande parte do “ser mulher” que tive vontade de escrever.
Depois de ler essa frase passei uns minutos ali, dentro do ônibus, encarando o texto. Ela ecoou dentro de mim e não foi por acaso.
Para mim, a beleza sempre pareceu um castigo.
Por beleza, me refiro ao “estar bela”.
Lembro que na pré-adolescência, quando percebi a onda da vaidade chegando até as minhas amigas na escola, meu primeiro impulso foi me esconder. Eu quase não vi meu corpo de menina ser substituído pelo de mulher porque ele estava quase sempre coberto em um moletom largo.
Por muito tempo eu não entendia porque me cobria tanto mesmo no calor, até minha psicóloga levantar essa questão quando eu tinha uns 14 anos e eu olhar para dentro, e procurar a resposta em mim.
Eu estava escondendo meu corpo do mundo dos homens.
Com 13 eu já sentia os olhares para o meu corpo na rua, aquele corpo que ainda não se entendia como uma mulher mas já era desejado por desconhecidos muito mais velhos.
Nesse mesmo ano eu menstruei pela primeira vez. E, hoje sinto que não falamos o como deveríamos sobre esse período com as meninas… Junto com a primeira menstruação chegaram várias outras coisas novas. As dores insuportáveis todo mês, a necessidade de seguir os dias como se eu não as sentisse, as instruções tortas sobre o que o meu corpo poderia fazer a partir de agora e toda a lista de coisas pelas quais eu seria cobrada agora que eu era uma mulher.
Foi também nesse ano que aconteceram várias das minhas primeiras vezes: tirei a sobrancelha, raspei minhas pernas, alisei meu cabelo com progressiva, usei salto alto, dei meu primeiro beijo, passei maquiagem, tirei as cutículas.
Em menos de um ano eu já estava mergulhada nos protocolos femininos e aprendi três duras lições:
Ser bonita custa tempo e dinheiro
Ficar bonita (na grande maioria das vezes) envolve dor física
Não se sentir bonita custa e dói mais do que tudo isso junto
Entender tudo isso me assustou e eu decidi que não cairia nessa.
Com 14 anos eu defendia a minha beleza natural e lutava por ela, "me ame como eu sou ou não me ame.” Eu pensava: "não vou me maquiar por horas para alguém me notar, não vou usar roupas que mostram o meu corpo pra que as pessoas vejam ele antes de me ver, não vou trocar meu all star por um salto que não me deixa dançar".
Por anos esse discurso funcionou mas, aos poucos, sem eu me dar conta, ele mudou.
Eu arrisco dizer que foi quando os meus relacionamentos amorosos começaram, quando eu passei a depender de fontes externas validando a beleza que eu sempre percebi em mim. É… eu arrisco dizer que foi por aí que as coisas se bagunçaram.
Hoje, em qualquer lugar que eu vou, minha cabeça fica inundada de perguntas sobre a minha própria aparência, como vozes baixinhas que insistem em continuar falando mesmo quando eu peço para parar.
Estou bonita o suficiente? Meu cabelo ainda está no lugar? Melhor murchar a barriga? Meu braço fica fino nessa posição? Escolhi a roupa certa para a ocasião? Tem alguma mulher aqui mais bonita que eu? Tem alguma mais feia que eu? Eu deveria ter começado a me arrumar antes. Eu deveria ter feito minha unha no salão. Eu deveria ter alisado melhor o meu cabelo.
Algo deve estar errado já que eu, que quando adolescente ria das meninas que passavam horas no banheiro da escola passando quilos de maquiagem e reclamando da própria aparência o tempo todo, me vejo várias vezes pensando em aumentar minha boca com botox, fazer algum procedimento estético que promete me melhorar e ainda me pego vez ou outra me cobrando por não ir um dia à academia com medo de engordar.
Eu, que sempre gostei de quem eu sou, cogitei mudar algo em mim que até três posts do Instagram atrás eu nem sabia que odiava.
A prisão da ditadura da beleza é um lugar que tento há anos me libertar, mas quanto mais eu fujo, mais armadilhas aparecem para me capturar de volta.
Estar presa na necessidade de estar sempre bonita e (pior) de precisar ter essa beleza validada de alguma forma - seja pelo parceiro, por outras mulheres ou pelo número de corações em uma foto - é exaustivo.
A verdade é que eu queria conseguir ter a tranquilidade de não precisar checar meu reflexo no espelho o tempo todo, de sair de casa me sentindo bem e não mudar de opinião ao ver outra mulher bonita na rua, de entrar e sair do Instagram sem abalar minha autoestima.
Mas eu não consigo.
E esse seria um problema só meu, a ser tratado com terapia, se tantas outras mulheres não compartilhassem da mesma exaustão.
Estamos todas cansadas da beleza.
Cansadas de não ter o direito de não ocuparmos nossas mentes e agendas e comprometermos nosso salário com isso. Cansadas de se sentir ameaçada por outra mulher bonita, cansadas de correr atrás de um ideal que sempre muda pra que ninguém nunca alcance.
Não importa o quão inteligente eu seja, sempre estarei triste por não ser bonita o suficiente para seja lá o que for.
Enquanto isso, os homens correm suados e descabelados enquanto praticam seus esportes preferidos sem pensar nenhuma vez se estão atraentes para qualquer que seja a platéia, se arrumam para sair em 10 minutos e usam o resto do tempo para fazer o que tiverem vontade, elogiam seus amigos bonitos sem medo de serem substituídos por eles, exalam sua autoconfiança sem a mínima necessidade de validação externa.
A quem interessa que as mulheres não se sintam boas o suficiente? A quem interessa que a nossa autoestima nunca esteja alta? A quem interessa que o padrão do "ser bela” mude tanto a ponto de estarmos sempre ocupadas demais em alcançá-lo e cansadas demais para correr atrás de qualquer outro ponto das nossas vidas?
Quando tantas de nós levamos o mesmo problema para a terapia, ele provavelmente não deveria estar sendo discutido apenas entre quatro paredes. A narrativa da beleza está nos adoecendo e, se isso não te incomoda ainda, você provavelmente está prestes a perceber o grande incômodo que é sustentar tudo o que envolve a beleza feminina no século XXI.
No Dia Internacional da Mulher, eu desejo que você, mulher, consiga deixar de enxergar a beleza como um castigo que carregamos desde a adolescência e comece o quanto antes a caminhada que vai te libertar para se amar como sua versão criança um dia se amou.
E é exatamente o mesmo que desejo para mim.
teoria para se aprofundar
No famoso livro “O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”, Naomi Wolf vai dizer que toda essa preocupação com a beleza nasceu no pós Segunda Guerra Mundial, quando pesquisas mostraram que entre 61% a 85% das mulheres não queriam voltar para o trabalho doméstico. Segundo a autora:
“quando a dona de casa insegura, entediada, isolada e inquieta abandonou a Mística Feminina pelo local de trabalho, os anunciantes se defrontaram com a perda de seu principal consumidor. Como garantir que trabalhadoras ocupadas e estimuladas continuariam a consumir nos mesmos níveis de quando tinham o dia inteiro para isso e não dispunham de muitos outros interesses que as ocupassem? Era necessária uma nova ideologia que as levasse ao mesmo consumismo inseguro de antes (…) uma neurose portátil que a mulher pudesse carregar consigo para dentro do escritório”.
Você já deve ter ouvido falar na Guerra de Tróia, uma das mais conhecidas da mitologia grega. O que você talvez não saiba é que foi a beleza que definiu os dois lados da guerra. A mitologia conta que Páris, por ser considerado o mais belo dos homens, foi convidado a ser juiz de um concurso de beleza e decidir qual das deusas era a mais bonita: Hera, Atena e Afrodite. Páris escolhe Afrodite, que tinha lhe prometido a a mulher mais bonita do mundo, Helena, se ele a escolhesse.
”Eu me amo até pegar no celular”, esse episódio do podcast Bom dia, Obvious fala sobre como as redes sociais influenciam várias das nossas inseguranças em relação ao nosso corpo.
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Oi!
O texto de hoje é uma carta aberta a todas as mulheres que compartilham dessa exaustão comigo. Esse é um assunto tão difícil pra mim que fiquei incomodada só de pensar em escrever mas, por isso mesmo, escrevi.
Publicar é sempre a parte mais difícil, preciso de muita coragem pra apertar o botão “enviar", porque a partir do momento que você lê essas palavras, elas passam a existir de verdade no mundo.
Espero que elas tenham feito sentido pra você.Até quarta que vem :)
Le
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👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn, Instagram e Twitter (com mais frequência do que deveria).
''Eu, que sempre gostei de quem eu sou, cogitei mudar algo em mim que até três posts do Instagram atrás eu nem sabia que odiava.''
Me identifiquei muito com essa frase. É um exercicio diário tentar não surtar e se comparar com tudo que a gente vê. A batalha é longa, porém necessária.
Sou relativamente nova por aqui, e não tinha lido esse texto ainda, mas me identifiquei demais. Passei por muitas coisas assim e consegui me libertar há alguns anos desses padrões, e deixa eu te contar: quem te ama, vai te amar do seu jeitinho, sem precisar mudar nada 🩷, eu encontrei alguém assim do lado de cá, eu já tinha desapegado de todo padrão, não me cobrava mais, me amava e amava meu corpo do jeito que é, e quando comecei a me relacionar com essa pessoa sempre me senti bem de autoestima porque eu já estava liberta dessa autocobranca. Uma pessoa me ajudou muito nessa libertação: Alexandra Gurgel. Insta dela @alexandragurgel - eu maratonava tudo que ela falava, foi uma inspiração e conseguiu virar uma chavinha na minha cabeça.
Ps: layout atual dos seus textos é BEMMMM mais intuitivo e melhor, continue assim, sua news é de puro aprendizado e conforto emocional para mim 🩷