[edição 19 | tempo de leitura: 7 minutos]
O esquecimento é natural, mas a rapidez com que temos esquecido não é. No meio de tanta informação, muita coisa se perde. Em especial, aquelas que não fazemos questão de lembrar.
O que ficou perdido por aí?
Terminei de amarrar o tênis, fui até a porta e comecei a virar a chave. Antes de sair, voltei alguns passos e peguei a garrafa de água que quase esqueci na cozinha.
Passei pela porta e olhei o céu "mais tarde vai chover". Quando virei a esquina, vi meu ônibus descendo a avenida e andei depressa pra não perder.
"Bom dia”, para o motorista enquanto subia as escadas.
"Bom dia", para o cobrador enquanto passava a catraca.
Sentei em um dos bancos do fundo e notei que o trânsito estava livre. Fiquei feliz por esse pequeno milagre.
Cheguei na academia em 15 minutos.
"Bom dia", em resposta ao pessoal da recepção.
Treinei por 1 hora e meia e fiz o mesmo trajeto de volta para casa.
E ai, sentiu falta de alguma coisa?
Máscaras, álcool em gel, distanciamento social… O cotidiano não parece mais precisar dessas palavras para ser correto. Narrei uma parte do meu dia sem citá-las e aposto que você nem estranhou o fato delas não estarem lá.
Isso significa que finalmente voltamos ao normal?
Bom, a Covid ainda é uma das principais causas de morte no Brasil, e é verdade que algumas pessoas continuam utilizando máscaras no transporte público e que encontrar álcool em gel nas recepções e nas mesas dos restaurantes virou um hábito. Mas, fora isso, são poucos os rastros da pandemia no cotidiano.
Após três anos, a sociedade parece ter superado a angústia do isolamento social, o terror das milhares de perdas e a curiosidade sobre as vacinas e seus laboratórios.
Três anos.
Três anos que às vezes parecem um só, mas que também parecem cinco.
O que aconteceu três anos atrás? O que aconteceu no ano passado? O que aconteceu no meio dos dois?
Eu juro que por aqui me custa muito lembrar. É como se quando eu olhasse para trás, enxergasse esse período através de um vidro embaçado.
De repente, as lembranças dos meus 23 anos parecem estar mais longe que as dos 21.
Tentando recordar, apelei para as memórias que o Instagram me fez o favor de guardar, mas revê-las foi tão estranho quanto assistir um filme com outra atriz me interpretando.
É como se a pandemia, apesar de ter me afetado profundamente, nunca tivesse existido.
E isso não é nada que a ciência não possa explicar.
Basicamente, nosso cérebro é programado para esquecer traumas. É isso que nos permite seguir em frente. Alguns fatores comuns contribuem para que essas lembranças ruins fujam da nossa memória, como o estresse constante e níveis baixos de interação social.
Só esses dois já explicam muito o que aconteceu durante a pandemia. Afinal, por pelo menos um ano (seguindo ou não as medidas de prevenção à risca) lidamos com o estresse e o isolamento por mais vezes do que gostaríamos.
Porém, existe um fator que difere essa pandemia de outras que já enfrentamos: a sobrecarga de informação.
Segundo um estudo de 2019, o objetivo da nossa memória não é lembrar fatos, mas nos ajudar a tomar decisões inteligentes, retendo apenas informações valiosas.
E o que acontece quando temos informação demais?
“Se você está tentando navegar pelo mundo e seu cérebro está constantemente trazendo várias memórias conflitantes, isso torna mais difícil para você tomar uma decisão informada.” (Independent UK)
Quanto mais informação, maior a dificuldade do nosso cérebro de organizar, acessar e fazer conexões entre cada uma delas.
É como um guarda roupa desorganizado em que você esquece que tem algumas peças de roupa porque nunca as vê e até confunde uma blusa com uma saia da mesma cor.
Por isso, mesmo momentos como a pandemia, que despertaram tantas sensações diferentes, estão sujeitos a desaparecerem da nossa memória depois de um tempo.
Afinal, quem iria querer lembrar das brigas públicas entre governadores e presidente, da falta de vacina, do medo dos grupos de risco, do preço dos testes, da incerteza do trabalho, das notícias de mais pessoas nos deixando a cada dia, dos hospitais improvisados, dos profissionais de saúde exaustos e até do simples desconforto de usar máscara no ônibus em dias quentes?
Esquecer não seria um problema se não fosse perigoso.
A maneira como a sociedade decide falar ou não sobre eventos do passado afeta nossa memória coletiva e muda a forma como as gerações futuras aprenderão com as nossas experiências.
Eu tinha 3 anos quando as torres gêmeas foram atacadas nos Estados Unidos, mas todos os filmes de Hollywood citando o atentado se encarregaram de me explicar o que aconteceu. O mesmo vale para a guerra do Vietnã, quantas produções sobre soldados americanos você já assistiu?
O Holocausto terminou mais de meio século antes de eu nascer, mas as aulas de história, os livros e os filmes também me contaram sobre ele.
Quando tive a chance de conhecer Berlim, vi nas ruas rastros do muro que um dia dividiu a cidade. Pedaços de concreto, relatos escritos de pessoas que viveram aquela época, fotos das casas que foram derrubadas, registros do que aconteceu por ali.
Monumentos, datas especiais no calendário, livros, filmes, museus... Isso tudo existe por um único motivo: não se esquecer do que a memória insiste em não querer lembrar.
Já fazem três anos e, ao mesmo tempo, fazem apenas três anos.
Chegou a hora de decidir como vamos escolher nos lembrar da pandemia.
teoria para se aprofundar
Os conhecimentos passados de pai para filho costumam durar apenas duas ou três gerações: podemos saber algo sobre nossas avós ou mesmo sobre nossas bisavós, mas quase nada além de nossa árvore genealógica. Sem artefatos culturais – livros, filmes, estátuas, museus – o mesmo pode acontecer com as memórias da pandemia. (The Washington Post)
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Como as memórias se formam e como nós as perdemos? Um resumão ilustrado que explica muita coisa em 4 minutos:
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para se inspirar
“Às vezes a gente fica extremamente frustrado quando as pessoas ao nosso redor parecem ter uma enorme dificuldade de compreender o óbvio. O problema é que nós mesmos temos uma enorme dificuldade de nos lembrar de como era a vida antes do óbvio se tornar óbvio.”
Isso tem até nome: maldição do conhecimento.
Precisa de um exemplo? Assiste esse vídeo:
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links que valem o clique
Esqueça tudo o que te venderam sobre histórias de fantasia e ficção. A segunda temporada de Cidade Invisível chegou na Netflix conectando várias lendas do folclore brasileiro (que são bem mais envolventes do que muitos personagens americanos por aí). Daquelas produções nacionais que dão orgulho de ser brasileiro depois de assistir.
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Oi!
A sensação estranha do pós-pandemia continua por aí também? Se sim, espero que essa edição te ajude a perceber que ainda não superamos esse período como o cotidiano faz parecer. E tudo bem.
Até quarta que vem :)
Le
o que rolou na edição anterior
👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn, Instagram e Twitter (com mais frequência do que deveria).
Eu sinto que existe um buraco no tempo por causa da pandemia, muito difícil buscar algo na memória e ter que pensar se realmente faz mais tempo do que eu lembro ou foi durante a pandemia - que parece muito tempo, mas só tem 4 anos