[edição 18 | tempo de leitura: 7 minutos]
Qualquer realidade sempre tem mais de um ponto de vista, isso é fato. Mas o que acontece quando apenas um deles chega até milhões de pessoas? É possível que esse pedaço da história se torne a realidade completa?
Mais de cem anos atrás Machado de Assis deu vida a um dos casais mais famosos do Brasil: Bentinho e Capitu, personagens do romance Dom Casmurro.
Lembro da primeira vez que me fizeram a clássica pergunta:
“Capitu traiu Bentinho?”
Eu, que já tinha ouvido algumas descrições de Capitu, pensei que ela parecia mesmo capaz de algo assim. Decidi ler o livro e, a cada cena que Bentinho sentia ciúmes, ela parecia mais e mais culpada.
Porém, ao chegar na última página, percebi que nada ali servia como prova de uma traição. Ainda assim, é quase impossível dizer com certeza que ela não traiu.
Por não ter como afirmar, Bentinho nos fez questionar: "será que não traiu mesmo?”
A dúvida sobre a fidelidade de Capitu foi criada de um jeito tão convincente que continua viva mesmo depois de um século.
Toda história é contada por alguém.
E esse narrador é quem nos dá as informações que vão nos ajudar a criar uma opinião sobre o assunto. Mas, se ele só compartilha os fatos relevantes a ele, pode parecer que a verdade é aquela porcentagem que nos foi dita.
Mas não é.
Dom Casmurro é uma história contada apenas por Bentinho, a partir do que ele viu e do que sua imaginação (quase sempre inflamada de ciúmes) acrescentou. Mas me pergunto o que aconteceria se fossem dadas à Capitu algumas páginas, e o que mudaria se um narrador neutro contasse essa mesma história.
Quem são os narradores das histórias que consumimos hoje?
A internet democratizou a criação de conteúdo. Isso quer dizer que qualquer um pode falar sobre qualquer tema para o público que quiser. Mas, um grupo específico de narradores tem chamado cada vez mais atenção: os perfis de fofoca.
Se você está no Brasil e usa a internet, provavelmente já cruzou com algum post dessas contas.
Todos esses perfis que falam de assuntos semelhantes e aparentam ser concorrentes são, na verdade, parte de um mesmo grupo chamado Banca Digital.
A Banca Digital se descreve como uma agência especializada em marketing de influência, que agencia os 37 maiores perfis de entretenimento do Instagram e do Twitter (até janeiro desse ano a @choquei também fazia parte da lista). Juntas, as contas somam 73 milhões de seguidores. Ela é um projeto da Mynd que, por sua vez, agencia uma lista enorme de artistas e influenciadores digitais.
A crescente popularização desses perfis fez com que eles fossem de simples páginas de fofocas e memes à canais de publicidade para marcas e pessoas.
Por trás das fofocas e da aparente frivolidade estão milionárias verbas publicitárias de grandes empresas, cada vez mais destinadas a canais digitais, assim como uma rede de perfis capaz de pautar a internet brasileira. Para os anunciantes, a Banca Digital se define como “a forma perfeita da sua marca fazer parte das conversas mais virais do momento”. (Núcleo)
Essa receita não é nova.
A fofoca sempre vendeu e as marcas sempre souberam se aproveitar disso.
Até então, os perfis de fofoca na internet pareciam ter nascido apenas para ocupar o lugar das revistas vendidas nas bancas de jornal. Seguindo a ordem natural do mundo na era das redes sociais:
As revistas impressas deram lugar aos perfis no Instagram
As celebridades da TV deram lugar aos influenciadores digitais
Mas, de uns tempos pra cá, mais coisas mudaram:
A propaganda clara e objetiva no meio das páginas das revistas impressas deram lugar ao #publi (que nem sempre parece publicidade)
As pautas que antes tratavam apenas de celebridades, entretenimento e estilo de vida foram aos poucos cedendo espaço para notícias de política, economia e até guerra
Os processos de checagem de notícias deram lugar a… bom, na verdade deram lugar a absolutamente nenhum processo de checagem (e a quantidade de fake news compartilhada por esses perfis reforçam isso)
Além disso, muitas das notícias veiculadas em uma página aparecem repetidamente em outras páginas do mesmo grupo, levantando a suspeita de que as pautas dos perfis estão conectadas.
Embora a empresa negue interferência editorial e diga que os perfis são independentes, a repetição frequente de postagens indica que há algum nível de coordenação entre eles — que são capazes, com isso, de manter assuntos em voga ou amplificar distorções sobre os temas mais comentados na internet. (Núcleo)
Seja para cancelar uma celebridade, impulsionar um lançamento, abafar um caso polêmico ou influenciar uma opinião sobre políticos, marcas, produtos e pessoas, postando de maneira coordenada essas contas têm força suficiente para decidir o que vai viralizar na internet e virar assunto no país.
E por que esse é um movimento que vale a pena prestar atenção?
Se em Dom Casmurro Bentinho era o narrador, aqui o controle da história fica na mão de alguns poucos administradores de páginas, todos parte de uma mesma rede com interesses, clientes e patrocinadores similares.
Ao contrário das revistas tradicionais, esse novo conteúdo existe no território quase sem lei das redes sociais e os responsáveis por regular (ou não) o que existe nelas são as grandes empresas de tecnologia, que também têm seus interesses próprios em lucrar com o tempo que as pessoas passam em suas plataformas.
Daí fica a pergunta…
Se o conteúdo das páginas de fofoca gera entretenimento,
que gera retenção de atenção do público,
que gera publicidade,
que gera lucro para as empresas de tecnologia…
… quem fica responsável por avaliar a qualidade e a veracidade dessas narrativas que estão, cada vez mais, influenciando a opinião pública?
teoria para se aprofundar
Esse estudo sobre os perfis da Banca Digital foi o único material que encontrei sobre a influência dessa nova rede na internet. O estudo analisa e categoriza 1.472 publicações de 24 dessas páginas e mostra como alguns assuntos se repetem sistematicamente entre elas.
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Esse podcast inspirou a introdução da edição de hoje. Ele também fala sobre o poder do narrador, mas explora um outro grupo especialista em criar e manipular narrativas. O episódio é uma entrevista com um criador profissional de fake news para campanhas políticas. Ele conta as táticas mais utilizadas e apresenta o mercado que é muito maior e mais profissional do que pode parecer.
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Aqui vai um outro ponto de vista sobre essa história toda. Os jornais parecem cada vez mais estressados com o jeito como suas notícias estão sendo repostadas pelos perfis de fofoca. Será que eles estão realmente preocupados com como isso afeta quem consome a informação ou só incomodados porque a @choquei consegue engajar o público digital de um jeito que a mídia tradicional nunca conseguiu?
🤳 Se for postar um story dessa edição, me marca por favor (@souza_ltc)? Eu acho chic :D
para se inspirar
“A ideia é destruir o conceito de verdade. Eles tentam criar uma sensação de dúvida (…) Não é tão óbvio, talvez algo tenha acontecido mas não temos certeza... Todos estão mentindo".
Esse vídeo mostra a capacidade do Telegram de agrupar perspectivas de diferentes lados na guerra na Ucrânia e gerar dúvida sobre o que de fato é real.
(O vídeo é em inglês, mas dá pra pedir pro Youtube traduzir a legenda automaticamente se precisar)
Sabia que dá pra curtir esse texto? É só clicar no coraçãozinho ❤️ no início ou no fim do e-mail.
links que valem o clique
💭 Pensando muito nisso aqui.
💬 Eu amei essa entrevista que ficou parecendo uma conversa de amigas.
🪩 Esse aniversário temático entrou pra lista de coisas que vi na internet e me deu vontade de fazer.
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Oi!
São 00:42 da terça e estou finalmente terminando essa edição depois de passar uma semana com o assunto martelando na minha cabeça.Fiquei bem surpresa quando percebi que ainda tem pouca discussão na internet sobre a mudança de comportamento nos perfis de fofoca e, principalmente, sobre o poder deles de se organizar em rede e influenciar a opinião pública. Sinto que esse é só o começo de uma discussão que vai se desenrolar durante o ano. Vamos ficar de olho.
Até quarta que vem :)
Le
o que rolou na edição anterior
👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn, Instagram e Twitter (com mais frequência do que deveria).