[edição 27 | tempo de leitura: 5 minutos]
na época em que ainda existiam algumas locadoras no bairro, e escolher um filme para assistir no fim de semana era quase um ritual, eu e meu pai tínhamos um filme favorito em comum.
ele se encarregava da pipoca. eu e minha irmã nos encaixávamos no sofá, e logo minha mãe chegava:
“esse filme, de novo?”
a gente dava risada, porque… sim! era o mesmo de sempre.
mas fazer o que se as músicas eram viciantes, os personagens cativantes, as cores vibrantes e a história incrível?
a pipoca ficava pronta, meu pai se ajeitava e eu apertava o play.
minha irmã e minha mãe pegavam no sono, mas eu e meu pai continuávamos atentos, impressionados com cada detalhe do roteiro que já conhecíamos de cor.
a fantástica fábrica de chocolate
esse era o filme. para mim, a história mais criativa e maluca que alguém já tinha criado. por isso, fiquei curiosa quando um dia, no meio de um almoço em família, ouvi um dos meus primos mais velhos dizendo:
“o original é bem melhor"
foi assim que eu descobri que aquela história já era antiga e tinha sido contada mais de 30 anos atrás.
em um final de semana qualquer decidi arriscar, e, ao invés da versão de 2005, escolhi o filme de 1971.
eu detestei cada minuto.
achei as cores feias, as músicas chatas, os diálogos entediantes. mas se a história era a mesma, o que fazia com que eu achasse uma versão tão melhor que a outra?
é que a adaptação de 2005 conversava com a minha infância nos anos 2000, do mesmo jeito que a antiga, conversava com a do meu primo nos anos 80.
apesar da essência da história ser a mesma, todo o imaginário em torno dela era novo, moderno e tecnológico. o filme original já não parecia tão atrativo assim para uma criança da geração z.
isso me fez lembrar de uma entrevista
em que o Emicida disse que alguns dos seus fãs são órfãos do seu primeiro álbum, e que existe sempre essa cobrança pra fazer mais do que já foi feito.
um deles falou:
"tenho uma saudade daquele seu primeiro disco”
e a resposta do Emicida foi:
“ué, mas ele continua aí. é só escutar”
o conhecido conforta
e é por isso que velhas histórias fazem sucesso. é só pensar em todos os filmes da Disney faturando milhões com versões live action. todo ano um novo lançamento mais aguardado que o outro.
mas, histórias antigas recontadas são chamadas de “adaptações” por um motivo.
elas não têm o papel de repetir o velho, mas de mesclar a essência de uma boa história com o espírito do tempo em que estão sendo recontadas.
afinal, qual seria o objetivo de
criar um filme já criado
lançar um álbum já lançado
pintar um quadro já pintado
quando o original está sempre lá, pronto para ser revisitado?
recontar é a arte de misturar o velho e o novo
por isso, antes de recontar uma história antiga é preciso entender como ela dialoga com o presente.
e isso serve para tudo. desde os musicais da Disney, até fatos históricos.
as narrativas mudam conforme descobrimos coisas novas, entendemos melhor as antigas e nos perguntamos como faria sentido contá-las no presente.
termino esse texto sem respostas, mas com uma pergunta incômoda:
quais histórias precisam de um novo roteiro?
“São realmente novas ideias que estamos procurando? Ou ansiamos pela capacidade de nos surpreender, de nos apaixonar por novas versões de velhas histórias que falam do nosso tempo? A natureza humana não muda, mas o mundo em que os humanos vivem sim. E nosso mundo nos apresenta desafios e medos específicos. (...) Algo dentro de nós quer ouvir as velhas histórias contadas de novas maneiras”.
🔗 é o que diz esse artigo da Vox.
*
“As pessoas gostam de buscar novidades que tem ao mesmo tempo um gosto familiar (…) e esse é um dos motivos que explica o sucesso da nostalgia na cultura - como o livro Hitmakers explicou, criadores de sucesso tem o dom de serem arquitetos de surpresas familiares”.
🔗 trecho retirado da sessão "cultura” dessa edição da newsletter , com várias dicas legais sobre o tema.
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no fim de semana assisti o filme “Onde as Ondas Quebram”, na intenção de descobrir um pouco mais sobre a imigração Japonesa no Brasil, que em 2023 completa 115 anos.
sai de lá com uma visão nova sobre essa história tão antiga.
não que a história que eu soubesse estivesse completamente errada, mas ela não estava iluminada o suficiente com a luz dos dias atuais.
o documentário conta de um jeito pessoal e sensível, que te envolve do início ao fim, o que significou esse movimento de mudança de milhares de famílias japonesas para o Brasil e como ele refletiu na nova configuração dessas famílias e também na construção do nosso país.
o filme está em circuito de pré-lançamento e as sessões são gratuitas, veja onde e quando assistir aqui.
🇧🇷 Pedro descobrindo que não descobriu o Brasil
😬 a decolonização explicada em 2 segundos
⭐️ uma publi tão boa que nem parece publi
oi!
a edição de hoje é dedicada ao meu pai, que hoje completa 57 anos.
ele já foi citado em várias memórias da minha infância que compartilhei por aqui, e não é à toa. ele é com certeza um dos protagonistas da minha vida 💙
até quarta que vem!
Le
👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn e no Instagram (com mais frequência do que deveria).
Sensível e maravilhosa como sempre! Que delícia ler essa edição, Le!
Ainda sobre o tema: velhas histórias de fato mexem com a gente, a nostalgia virou tendência. Para muitos, os "revival" trazem aquele gostinho de uma época que já foi, uma lembrança gostosa. Para outros, é sobre surfar em algo "cool" e criar novas experiências a partir disso - só olhar pra Gen Z amando as Cybershots.