Mídia, críticos, internet, movimentos populares, ONGs, influenciadores… Tudo isso pode mudar a maneira como a sociedade enxerga, conta e reconta uma história, mas só o tempo é capaz de nos dar aquilo que mais precisamos para acreditar ou não em uma narrativa.
O ano é 2011.
Eu acordei atrasada (como de costume), cheguei atrasada (como de costume) e entrei na sala do primeiro ano do ensino médio.
Dava pra ver que a estrutura precisava de uma reforma urgente, fazia anos que aquelas janelas não abriam direito e o calor no verão era insuportável, mas me diziam que ainda era bem melhor do que uma escola pública e, apesar de nunca ter entrado em uma, eu acreditei.
Na hora do intervalo, um mar de crianças corria para a fila do lanche e, mesmo uniformizadas, eram nitidamente diferentes.
Isso tudo acontecia em uma escola que já não existe mais, num prédio provisório alugado no Rochdale, um bairro pobre de Osasco, na Zona Oeste de São Paulo, que serviu de cenário para o meu ensino médio.
Minha escola era, naquela época, um meio termo entre a escola pública e a privada.
Alguns, como eu, eram filhos de funcionários e isentos da mensalidade, outros comprovavam baixa renda e se isentavam também e, mesmo a grande maioria, pagava um valor bem abaixo do que as escolas particulares cobravam.
Essa flexibilidade toda se refletia na pluralidade dos alunos.
Eu lembro da sala ter gente de cores, religiões e tradições diferentes, gente com mais e com menos dinheiro, gente que morava nos bairros mais pobres e alguns (em menor quantidade) naqueles um pouco mais elitizados. Tinha quem ia de carro e quem pegava ônibus, quem levava lanche de casa e quem se garantia nas refeições que a escola dava.
Eu, uma criança branca de 14 anos, ainda não tinha me dado conta do que era diversidade, mas posso dizer que foi aquele ambiente que me permitiu entender que existiam realidades mais distantes e mais próximas da minha.
Em 2014 tudo mudou.
O prédio mudou.
Comecei a estudar em uma faculdade privada, num campus lindo, imenso e tecnológico.
A distância mudou.
O trajeto de 20 minutos entre a escola e minha casa virou 1 hora e meia.
A mensalidade mudou.
Apesar do desconto do ProUni e de uma bolsa de pesquisa, o valor do curso ainda era pesado e minha família continuou arcando com essa dívida mesmo depois do meu primeiro emprego.
As matérias mudaram.
As aulas de matemática que sempre detestei deram espaço para a grade curricular de um curso de moda cheio de aulas práticas, criativas e artísticas.
As pessoas também mudaram.
As pessoas mudaram muito.
De repente, toda a mistura do ensino médio não existia mais.
Grande parte dos alunos da faculdade moravam nos mesmos bairros, vinham do mesmo tipo de colégio e tinham a mesma cor.
Os poucos que saiam desse padrão, em sua maioria, tinham algo em comum: faziam parte de algum programa que facilitava a entrada naquele ambiente.
O que foi feito até hoje para que a sala das faculdades ficassem mais parecidas com as do ensino médio?
Notícias como essas, amplamente veiculadas desde que a ideia das cotas começou a ganhar força desenharam o imaginário da opinião pública sobre o assunto.
Apesar da Lei Federal 12.711 (também conhecida como Lei de Cotas), principal política pública brasileira para redução da desigualdade de acesso ao ensino superior, já ser uma realidade desde 2012, ainda é muito comum ouvir discursos contra ela.
Se por acaso você for a voz desse discurso, peço pra que dê uma chance para esse texto e fique por aqui até o fim, falta pouco.
Sempre que me perguntavam se as cotas fizeram efeito ou não eu me atrapalhava para responder.
Afinal, como eu poderia afirmar que mais pobres, negros, indígenas e portadores de deficiência estavam cursando o ensino superior se a minha própria sala de aula em 2014 não refletia isso?
Foi então que, no fim do ano passado, esbarrei com essa pesquisa, criada para analisar os impactos de 10 anos da Lei de Cotas no Brasil.
Ela apresenta dados que respondem a muitas das perguntas que já me fizeram:
78% dos cotistas entrevistados concordaram que “antes de saber sobre as cotas não cogitavam ir para a faculdade”. A conhecida desigualdade entre o ensino médio publico e privado era tão grande que até a possibilidade de entrar em uma faculdade parecia piada.
46% dos cotistas entrevistados foram a primeira pessoa da família a cursar o ensino superior. O que mostra que existe uma mudança drástica em quase metade dessas famílias. Avós e pais pararam no ensino médio, mas seus filhos tiveram a chance de subir mais um degrau.
Apesar das notas dos cotistas serem mais baixas do que da ampla concorrência na prova do ENEM, essa realidade mudava durante o curso superior. Apesar de terem que enfrentar o desafio de chegar na faculdade com menos preparo, os cotistas conseguiram acompanhar o bem o curso.
A cota social vem antes da cota racial. Ou seja, alunos brancos (baixa renda ou não) que estudaram no ensino público se enquadram na Lei de Cotas. Essa é uma que eu escutei muitas e muitas vezes "deveria ser por classe e não por raça". Apesar de ter inúmeros porquês de classe e raça serem assuntos inseparáveis no Brasil, nesse caso nem é preciso entrar nessa discussão. Se ficou dúvida, esse gráfico explica:
Apenas 5% das vagas nas universidades federais do Brasil são preenchidas por cotistas. 5%. Cinco por cento. Esse foi o pequeno número responsável por dar a milhares de famílias a chance de ocupar um espaço que nunca tinham feito parte antes. Não por falta de competência, mas por culpa de um sistema criado para excluir. 5% também é um número que eu nunca ouvi nos discursos que dizem que as cotas são uma ameaça à população branca.
A Lei de Cotas é um exemplo do poder que uma política pública pode ter na (re)construção de uma narrativa.
Gabriel Milanez, vice-presidente e estrategista da Box 1824 (uma das organizações desenvolvedoras da pesquisa) disse que por meio do estudo descobriram que as cotas:
"…transformam a realidade dos estudantes não só de forma individual, como também coletiva, antes mesmo da chegada à universidade. Saber que as cotas existem motiva os elegíveis a se dedicarem mais aos processos seletivos" (…) Essa primeira geração de cotistas da lei federal está conquistando trabalhos e rendimentos inéditos dentro de suas famílias, tornando-se referências dentro dos seus círculos próximos e motivando outras pessoas a tentarem seguir caminhos semelhantes.”
A mídia, os movimentos contrários, os críticos, as redes sociais, a internet, os movimentos populares, as ONGs, os influenciadores… Tudo isso pode mudar a maneira como a sociedade enxerga, conta e reconta uma história, mas só o tempo é capaz de nos dar aquilo que mais precisamos para acreditar ou não em uma narrativa: exemplos concretos de que ela funciona.
Sabia que dá pra curtir esse texto? É só clicar no coraçãozinho ❤️ no início ou no fim do e-mail. Leva 1 segundo e me ajuda a saber se esse conteúdo é relevante pra você. Obrigada!
teoria para se aprofundar
Contra fatos não há argumentos. A pesquisa que inspirou esse texto é essa aqui. Vale muito a pena dar uma boa olhada nela antes de formar qualquer opinião sobre esse tema tão polêmico.
para se inspirar
Pra entender porque raça e classe social são temas inseparáveis no Brasil, recomendo muito o podcast do Projeto Querino. Ele conta a história apagada do nosso país de um jeito fácil de entender, mas difícil de engolir.
links que valem o clique
🧘🏼♀️ Se você também precisa de ajuda para meditar, relaxar e dormir, vai gostar de saber que o aplicativo Balance está dando 1 ano de acesso grátis. Ele é de longe o melhor que já usei e tem me ajudado muito a controlar a ansiedade. Infelizmente, acho que é só em inglês. Se te interessar, esse é o link.
💌 Essa newsletter tem textos curtinhos, ilustrações lindas e dicas legais. É daquelas que ajudam a gente a respirar devagar em um dia difícil.
você tem 1 nova mensagem
Oi!
Tô terminando essa edição com dor e febre, torcendo pra não ser Covid. Parece que esse é o preço que se paga por viver o carnaval.Por pura curiosidade (e sem nenhum julgamento) queria saber sua opinião sincera sobre esse assunto. É só votar aí embaixo. É anônimo e leva 1 segundo. Obrigada!
Até quarta que vem :)
Le
o que rolou na edição anterior
💌 Gostou dessa edição? Compartilhe com alguém :)
💬 Para comentários ou sugestões é só responder esse e-mail
👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn, Instagram e Twitter (com mais frequência do que deveria).