Narrativa é uma história contada repetidas vezes que molda a maneira como a sociedade enxerga, entende e reage aos assuntos do mundo.
Sabe aquela música que você escuta até decorar? Ela pode ser o veículo perfeito pra fazer essas novas histórias chegarem onde elas precisam chegar, até atingir tanta gente por tanto tempo que as percepções das pessoas sobre determinado tema mudem.
A música tem um papel fundamental na construção de novas narrativas, e é sobre isso que vamos falar na Teoricamente de hoje.
Jornalista: “O Racionais faz algum tipo de trabalho social?”
KL Jay: “Esse é o trabalho social, a música que muda a atitude das pessoas, que entra na mente.”
No centro da foto, da esquerda para a direita: KL Jay, Ice Blue, Mano Brown e Edi Rock. Integrantes do Racionais MC's, um dos maiores grupos de rap do Brasil.
Eu nunca fui fã de rap.
Com uns 14 anos, lembro de escutar os meninos na escola cantando em coro:
Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK1
Eu lembro de pesquisar a letra uma vez. Queria entender porque eles gostavam tanto, queria até conseguir gostar, mas aquelas frases não faziam sentido nenhum pra mim.
Anos se passaram até eu descobrir um dos motivos de não entender as letras: meu endereço.
A maioria dos meus amigos da escola moravam muito próximo ou dentro de periferias em Osasco, zona oeste de São Paulo. Apesar de frequentarmos a mesma sala de aula e eu morar em um bairro simples, a periferia mais próxima ainda era razoavelmente distante.
A música dos Racionais não era pra mim. Era pro meu amigo que jogava futebol na rua, que conhecia alguém que foi preso, que era vítima de violência policial desde criança, que não se impressionava como eu ao ver uma arma, que só tinha a mãe, que não conheceu o pai e que, na maioria das vezes, era negro.
As histórias na voz dos Racionais narravam o cotidiano de milhares de jovens brasileiros que até então nunca tinham ouvido sua própria história em voz alta.
E isso, foi revolucionário.
A arte conta histórias e histórias constroem narrativas.
Uma pesquisa que entrevistou grandes fundações nos Estados Unidos que investem dinheiro em projetos de mudança de narrativa, levantou dois pontos que vão ajudar a construir o que eu tô tentando te contar aqui:
Algumas fundações entrevistadas disseram que o trabalho cultural precisa ser integrado a qualquer trabalho de mudança de narrativa.
Enquanto isso, as organizações apoiadas por essas grandes fundações, que atuam com foco local e conhecem de perto as comunidades, destacaram a importância do trabalho cultural acontecer em parceria com pessoas que têm histórias autênticas para compartilhar.
Juntando isso tudo dá pra entender que:
Quando os membros de uma comunidade contam suas histórias para outros participantes desse mesmo grupo, as palavras ganham mais força. Isso porque a história gera identificação. Quem escuta se vê como o protagonista e isso só acontece porque quem conta está falando a partir da sua própria experiência.
Foi exatamente isso o que os Racionais fizeram, alavancaram uma mudança de narrativa potente sobre a vida na periferia, começando por narrar a realidade para a própria comunidade negra e periférica, conscientizando esse grupo sobre as injustiças cometidas contra eles:
Se somos meros cidadãos e eles o sistema
E a nossa desinformação é o maior problema
Mas mesmo assim enfim, queremos ser iguais
Racistas otários nos deixem em paz
(…)
O sistema é racista, cruel
Levam cada vez mais
Irmãos aos bancos dos réus
Os sociólogos preferem ser imparciais
E dizem ser financeiro o nosso dilema
Mas se analizarmos bem mais você descobre
Que negro e branco pobre se parecem
Mas não são iguais
Crianças vão nascendo
Em condições bem precárias
Se desenvolvendo sem a paz necessária2
Em seguida, fazendo essas histórias saírem dos limites das comunidades de origem e se transformarem em denúncia para o resto da população:
60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente3
Mas, como o próprio Mano Brown diz no documentário sobre a história do grupo, só denunciar os problemas não era suficiente. Ele percebeu que as letras deveriam construir um novo imaginário do jovem negro morador da periferia. Então, suas músicas passaram a falar também de esperança:
Fé em Deus que ele é justo!
Ei, irmão, nunca se esqueça
Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta
Onde estiver, seja lá como for
Tenha fé, porque até no lixão nasce flor4
Para mim, o trabalho dos Racionais é um exemplo em mudança de narrativa por meio da arte, porque:
sabe exatamente quem é seu público
fala sobre assuntos relevantes para o público a partir de experiências pessoais
usa uma linguagem em comum com o público
educa o público sobre as coisas que eles ainda não entendem
dá ao público um sentimento de pertencimento, de identidade
Com isso, os Racionais MC's ajudaram a fortalecer o movimento negro para as mudanças que eles ainda viriam a reivindicar e enfrentar no futuro.
A mudança de narrativa não se dá apenas pela arte, mas a arte é essencial nesse processo. Ela é responsável por levantar questões incômodas, propor reflexões, propagar novas histórias e ajudar moldar a maneira como a sociedade enxerga, entende e reage aos assuntos do mundo.
Na sua opinião, quais artistas estão ajudando a transformar narrativas hoje?
teoria para se aprofundar
O documentário da Netflix sobre os Racionais MC's foi o que me fez querer escrever a edição de hoje. Lá fica claro porque o que esses caras fizeram é tão revolucionário e como cada álbum tem um papel importante na construção dessa narrativa de acordo com o que estava acontecendo no Brasil. Sério, assiste.
Se o conceito de mudança de narrativa ainda te confunde, dá uma olhada na edição #1 da Teoricamente.
para se inspirar
Violência e descaso social são tópicos normalmente atrelados à favela e que, querendo ou não, vivem no imaginário de quem não mora lá. Mas, reduzir a favela à isso é omitir todos os outros atributos da sua comunidade.
O influencer o Raphael Vicente, diz ser sua missão narrar o lado bom da favela, muitas vezes negligenciado, nos conteúdos que cria para a internet. Segundo ele:
“Só quem mora sabe a realidade, que não é essa da violência, das drogas e das operações policiais. Sempre tento mostrar que a Maré é um lugar de amor.”
Eu já acompanho o trabalho do Raphael Vicente há algum tempo, ele cria vídeos, sempre muito engraçados, com a própria família e transforma assuntos cotidianos em roteiros incríveis, tudo com o Complexo da Maré, periferia do Rio de Janeiro, como cenário.
O negócio é que duas semanas atrás, ele postou um video clipe com uma versão bem abrasileirada de Waka Waka, o hino da Copa do Mundo há 12 anos ecoando na nossa cabeça. O resultado final foi uma super produção audiovisual que repercutiu tanto que a própria Shakira repostou o vídeo.
Mas o que me interessa aqui mesmo foi o impacto que esse lançamento teve no resultado das buscas por "Complexo da Maré” na internet. Dá uma olhada nos dois prints:
Incentivar e comunicar iniciativas culturais é um jeito de fazer com que as notícias boas se tornem mais frequentes que as ruins.
Como as marcas podem ir além do #publi e passar a investir de maneira menos superficial em pessoas como Raphael Vicente, com o poder de mudar a narrativa sobre o Complexo da Maré, considerado um dos lugares mais perigosos do Rio, nem que seja por apenas por um dia?
links que valem o clique
🎧 Eu me interessei por Racionais depois de ouvir o podcast do Mano Brown no Spotify. Vou deixar aqui as entrevistas que eu mais gostei como sugestão: Emicida, Dr. Dráuzio Varella e Kondzilla.
😂 Esse vídeo da CPI das redes sociais é um dos meus preferidos do Raphael Vicente. O do Cachorro Homofóbico também é muito bom.
📚 “E a nossa desinformação é o maior problema”, esse vídeo aqui confirma a frase dos Racionais.
você tem 1 nova mensagem
Gente, foi difícil demais escrever essa edição.
Eu sabia que queria falar do Racionais, mas também tinham vários outros exemplos que eu poderia citar. Vou voltar a falar disso em alguma outra edição. Para garantir que o texto não passe de 8 minutos, resolvi parar por aqui.
A intenção não era fazer uma análise crítica das letras, mas entender como elas influenciaram uma discussão muito maior. Se durante o texto veio na sua cabeça algum outro artista ou grupo que está levantando questões capazes de mudar narrativas, me manda aí, vou gostar de saber.
Até terça que vem!
Le
o que rolou na edição anterior
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👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre marca, comportamento e narrativa
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Trecho da música Diário de um Detento, 1997.
Trecho da música Racistas Otários, 1993.
Trecho da música Capitulo 4 Versículo 3, 1994.
Trecho da música Vida Loka (pt 1), 2002.