[edição 43 | tempo de leitura: 6 minutos]
minha irmã mais nova era daquelas crianças engraçadas, sabe?
do tipo que fazia perguntas indiscretas, observava e entendia tudo o que acontecia ao redor. e, das muitas manias e esquisitices que uma criança pode ter, ela escolheu várias.
teve um tempo em que observar formigas virou seu passatempo.
às vezes ficávamos eu e ela, sentadas no chão, vendo as formigas andando em fila, rumo à algum lugar que só elas conheciam.
era ainda mais especial quando elas paravam para ajeitar um pedaço minúsculo de folha nas costas e depois seguiam, uma a uma, fazendo sua parte para tornar o formigueiro um lar.
quem via de longe não entendia porque duas crianças encaravam o chão com tanta atenção, afinal, dali de longe as formigas eram invisíveis.
mas quem tivesse curiosidade o bastante para chegar mais perto e observar, se dava conta do pequeno espetáculo que só a natureza é capaz de encenar.
in·vi·sí·vel
que não pode ser apreciado pelo sentido da visão; que não tem visibilidade; que não se vê.
que não se deixa ver; que não aparece por pertencer ao domínio da imaginação.
que não é visível a olho nu devido a sua extrema pequenez.
para aqueles que enxergam, o invisível pode facilmente ser confundido com inexistente. é simples: se não vejo, como comprovar que de fato existe?
mas como ficam então todos os outros sentidos?
o toque macio do cobertor lavado ontem
o cheiro que dá água na boca do almoço servido na mesa
o barulho incômodo do aspirador de pó no tapete da sala
mesmo com os olhos desviando a atenção constantemente, os outros sentidos continuam ali para lembrar que tem sempre algo acontecendo ao nosso redor. e dentro de casa não é diferente. existe um trabalho sem fim que roda em segundo plano, entre uma reunião e outra, entre um fim de semana e outro, entre um almoço e um jantar.
historicamente, esse trabalho invisível que acontece entre os muros do lar foi atribuido às mulheres. os homens saíam de casa em busca do dinheiro, e, portanto, restava para a sua dupla o cargo de cuidadora:
da casa,
do homem da casa e
de qualquer um que viesse à morar na casa
(exceto, é claro, ela própria).
anos passaram, guerras vieram e se foram, novas tecnologias chegaram, gerações nasceram e morreram, profissões foram inventadas.
agora, mulheres são estudantes, funcionárias, gerentes, diretoras, e também mães, filhas, esposas. novas tarefas chegaram, mas as antigas nunca se foram. uma grande pilha de papéis acumulada na mesa.
⤴🔎 falamos sobre a exaustão das mulheres causada por esse acumulo na edição #38
se os lares fossem empresas, a necessidade de uma reestruturação de área já teria sido levantada: “para que essa empresa funcione”, eles diriam no idioma corporativo, “será preciso reorganizar as tarefas entre os funcionários do time para garantir eficiência, agilidade e bem-estar da equipe”.
se os lares fossem empresas, seria visto como um absurdo o fato de um funcionário com tantos anos de casa não ter direito a salário: “este colaborador é de extrema importância para o funcionamento dessa organização”, eles diriam no idioma corporativo, “não conseguiríamos alcançar nossas metas sem ele, precisamos garantir que ele esteja motivado para continuar conosco".
mas as casas não são empresas, as casas são apenas lares.
e dentro dos muros dos lares, é preciso sensibilidade, ou no mínimo curiosidade, para chegar mais perto e enxergar a pessoa responsável pela manutenção constante daquela estrutura (que parece se manter sozinha).
essa é a mesma pessoa que percebe que o cobertor precisa ser lavado e, de fato, o lava, que sabe que é hora do almoço e por isso cozinha para todos, que vê a sujeira no chão e se propõe a limpar, que percebe a geladeira esvaziando e faz uma anotação mental do que precisa ser comprado, que te responde onde está o pano de chão, o produto de limpeza ou aquela blusa de frio que você não lembra onde guardou. é a mesma pessoa que recolhe o sapato que ficou na sala e que lembrou horas antes do jantar que a carne precisa ser descongelada.
essa pessoa é minha mãe, minhas tias, minhas avós, as mães delas e todas as que vieram antes delas. mulheres que não nasceram com um dom natural, como foram programadas à pensar, mas que foram ensinadas por cada novela e filme que assistiram, por observar o papel de homens e mulheres nas festas da família, o comportamento dos casais mais velhos e todas as regras invisíveis que circulam em nossa volta e absorvemos desde muito cedo.
a quem interessa que mulheres sigam trabalhando de graça dentro de suas próprias casas?
essa é uma das reflexões que podem surgir quando 3,9 milhões de jovens se deparam com esse tema. foi o que aconteceu no fim de semana passado, quando a redação do enem 2023 perguntou a cada um deles quais são os “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no brasil”.
se o cuidado do lar não gera renda, ele também não gera independência financeira.
e mulheres sem dinheiro próprio são mulheres sem liberdade.
mas, se os lares ainda estiverem muito longe de se transformar em empresas, com o nome de todos na folha de pagamento, que eles sejam ao menos como formigueiros.
afinal, o que seria do formigueiro se apenas uma formiga trabalhasse?
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o áudio de hoje tem uma pergunta, se você acertar a resposta, me conta nos comentários ;)
_livro
“o trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural da personalidade feminina, uma aspiração (…) isso aconteceu para que ele nunca precisasse ser remunerado”.
esse é um pensamento da silvia federici, no livro o ponto zero da revolução. ainda não li, mas foi recomendação de uma amiga em quem confio de olhos fechados quando o assunto é leitura de qualidade :) beijo, isa!⤴🔎 a isa tem um podcast incrível! dá pra escutar aqui.)
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_livro
“o mundo tinha mudado bastante, mas não pequenas regras, contratos e costumes, o que significava que na verdade o mundo não tinha mudado nada”.
o livro kim jiyoung, nascida em 1982, conta a história de uma jovem coreana levada ao psiquiatra pelo marido que teme que ela esteja louca. a obra deixa claro como as desigualdades de gênero são um problema universal, que atinge mulheres de diferentes culturas e gerações. um livro rápido mas muito profundo.
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👩🏼💻 A Teoricamente é escrita por Leticia, profissional de comunicação sempre estudando sobre futuro, comportamento e narrativa. Você pode me encontrar no LinkedIn, no Instagram e agora no Tiktok também (com mais frequência do que deveria).
Vi tanto minha mãe nesse texto... ela cresceu acreditando que, sim, o lar é responsabilidade dela, e se ela não pegar essa responsabilidade pra si, significa que ela "falhou" quanto mulher. Há tempos tento tirar isso da cabeça dela, mas é tão difícil lutar contra anos e anos de imposição social... lindo o texto, Le! Seguimos cuidando da gente, sempre em primeiro lugar :)
Como sempre amei esse tema, realmente algumas mulheres pegam todas as responsabilidades do lares só pra ela, eu amo dividir tarefas.